quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Tarefa Final - TEXTO 1




RELATO COMENTADO

SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO
Ítalo Calvino (1923-1985)

“Se Um Viajante numa Noite de Inverno", romance de Ítalo Calvino (1923-1985), é talvez o mais bem-sucedido esforço de valorização do leitor em uma obra literária.
O autor faz um convite à leitura e passa instruções ao leitor. Inova ao sugerir a seqüência ou ritual “indispensável” a ser seguido antes da leitura.
No momento exato em que sugere ao leitor que fale, grite: estou lendo Ítalo Calvino, que este autor abre mão do recurso metalingüístico e daí em diante não para de surpreender. As surpresas não param por aí, a mente humana é capaz de conceber infinitas possibilidades e Calvino surpreende ainda mais no desenrolar da trama.Isso por uma razão simples. Nesse "hiper-romance", o leitor é simplesmente o protagonista. Tudo se resume ao significado dessa peça fundamental da engrenagem narrativa, espécie de "única realidade" que restaria ao romance depois de concluído o ato de escrevê-lo. Assim, não seria despropositado classificar o livro de Calvino, escritor de língua italiana nascido em Cuba, como uma obra realista. Um realismo, claro, baseado no "fingimento" de que falou Fernando Pessoa. "Você vai começar a ler o novo romance de Ítalo Calvino, Se um Viajante numa Noite de Inverno", anuncia o autor logo na primeira linha. A frase, como ocorre com toda grande obra, contém o livro inteiro.
Por um erro da editora, o exemplar de "Se um Viajante numa Noite de Inverno" do personagem Leitor tem um defeito a partir da página 32, o que o leva a se dirigir à livraria para tentar trocá-lo. Lá ele recebe um novo volume e descobre que a história nada tem a ver com aquela cuja leitura havia iniciado. No final, o Leitor, e o leitor de verdade também, terá começado dez romances que, por motivos alheios a sua vontade, não conseguirá terminar de ler. Num século marcado pela metalinguagem nas artes, o metalingüístico "Se um Viajante numa Noite de Inverno" consegue o prodígio de se destacar por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, porque confunde o leitor real com o personagem Leitor, sem que, por exemplo, o volume que está nas mãos do primeiro apresente o tal defeito na página 32 (embora ele esteja, efetivamente, nela). O outro motivo: apesar da afiada ironia e do irresistível humor com que Calvino desfila tipos de romances, possibilidades de crítica e leitura, para não falar do deboche que reserva a certas atitudes dos círculos acadêmicos e editorais, é evidente que "Se um Viajante numa Noite de Inverno" revela o seu gosto pela reflexão literária. No fundo, ele funciona como um ensaio prático. Nesse sentido, o romance seria, de certa forma, a versão ficcional do que se convencionou chamar de estética da recepção que empenha-se em deslocar o centro da crítica literária do autor ou do contexto social para o leitor. Como faz o romance de Calvino. No fim de "Se um Viajante numa Noite de Inverno", Calvino escreve que, no passado, o sentido último de todos os relatos tinha duas faces: a continuidade da vida e a inevitabilidade da morte. Sem pejo de se apresentar como uma realidade romanesca, "Se um Viajante numa Noite de Inverno" realiza-se no mundo real, transformando, como se disse antes, os leitores --o concreto e o fictício-- num mesmo indivíduo. Isso acaba permitindo que a continuidade da vida se imponha à inevitabilidade da morte. "Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só ela nos pode dar", escreveu Calvino em "Seis Propostas para o Próximo Milênio". Sua obra-prima é a maior prova de que ele estava certo.

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